Festas no campus: tradição estudantil gera críticas sobre segurança

Discussão opõe quem defende o espaço público para integração e lazer gratuito e quem questiona a legitimidade desses eventos

LARA APOLINÁRIO E VINÍCIUS GRATON

“Cuidado com as festas! Faculdade é para estudar!”. Se você é — ou foi — universitário, provavelmente já ouviu isso dos seus pais. Hoje, quem frequenta o ambiente universitário sabe que é praticamente impossível estar em uma universidade e não participar, mesmo que indiretamente, de uma festa. Durante os semestres letivos, é comum que estudantes de todo o país se reúnam, em seus respectivos campi, com fins de confraternização e integração para realizar as conhecidas “festas universitárias”.

Na perspectiva de uma parcela mais conservadora da população, quando se pensa na relação entre a educação pública e o lazer, não é aceitável que o espaço público das Universidades Federais (UFs) seja utilizado para a promoção de festividades pelos universitários. Este conflito de opiniões sobre as festas perpassa a sociedade geral e penetra diretamente na política das instituições públicas brasileiras, que se dividem entre aceitar, ou não, os eventos como parte da cultura universitária.


“Parece um tabu falar sobre festas, parece um pecado na verdade. Nós temos, e sempre tivemos, celebrações nas universidades desde o princípio”, declarou o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Irineu Manoel de Souza, durante uma audiência pública sobre a regulamentação de eventos na UFSC em junho de 2023.


Desde 2022, a instituição elabora uma minuta que revisa a Resolução N° 002/CUn/2009, que regulamenta as festas na universidade atualmente.

O processo de revisão da normativa da UFSC é um dos mais recentes e progressistas entre as UFs, que, desde o início dos anos 2000, começaram a abordar e discutir o tema das festas universitárias mais amplamente e, consequentemente, iniciaram a elaboração de documentos para a regulamentação das festividades.

Na Universidade Federal de Goiás (UFG), os eventos promovidos pelos estudantes são autorizados e seguem a Resolução — Consuni Nº 40/2017. Segundo o Secretário de Promoção de Segurança e de Direitos Humanos da UFG, Ricardo Barbosa, a regulamentação das festas fortalece e garante a promoção de cultura com segurança para a comunidade universitária.


“A universidade é um lugar de celebração do conhecimento, da formação profissional, da extensão, da arte e da celebração também no sentido da cultura. Não há sociedade sem celebração. [A festa] É um aspecto da cultura e a gente não pode abrir mão dela”, afirma.


O posicionamento da UFG, de que os eventos realizados pelos universitários dentro do ambiente do campus fazem parte da cultura da própria instituição, propõe uma perspectiva progressista em relação a outras UFs, que, em sua maioria, optam pela proibição e não regulamentação das atividades.

É o caso da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), que, pela Resolução N° 45/2016, não permite que as festas ocorram dentro dos campi devido a episódios de violência durante as celebrações. Em 2012, de acordo com a Polícia Civil, houve a ocorrência de um estupro durante um evento festivo realizado por alunos no campus Goiabeiras, em Vitória.

Após o crime, o Ministério Público Federal do estado recomendou a suspensão dos eventos nas dependências da instituição, além da criação de um espaço adequado para as celebrações. O resultado desse processo foi a emissão, pelo Conselho Universitário (Consuni), da resolução que atualmente vigora na UFES, que trava a realização de quaisquer eventos não promovidos ou previamente aprovados pela universidade.

De acordo com o Superintendente de Infraestrutura da UFES, Alessandro Mattedi, o caráter restritivo da resolução permitiu que a questão da insegurança fosse amenizada. Contudo, mesmo após a aprovação da normativa, ainda há festividades ocorrendo no campus de forma clandestina. “As pessoas acabam fazendo de forma escondida [as festas], de forma clandestina. E essas atividades normalmente são de menor porte, que envolvem grupos de 50 pessoas”, relata.

No caso da UFES, hoje, a restrição não impede que as festas ocorram regularmente. Mesmo em menor escala, a falta de segurança e os riscos à comunidade acadêmica ainda estão presentes.

A fragilidade da segurança institucional é o principal ponto que impossibilita a regulamentação dos eventos universitários na maioria das UFs. Sem concursos públicos para cargos de segurança em instituições federais desde a década de 1990, o setor enfrenta desgaste e o caminho adotado é a terceirização.

De acordo com o Secretário de Segurança Institucional da UFSC, Leandro Oliveira, a reavaliação da atual normativa de festas na universidade passa pelo contexto da sucateação da segurança no campus. “É uma briga nova com o atual governo para ver a questão da contratação de seguranças do quadro da UFSC, que cada vez mais se aposentam e não há reposição. Colegas que faziam plantões de 8 horas estão fazendo expediente de 10 horas, 12 horas”.

Segundo o Secretário, atualmente, o quadro de segurança conta com cerca de 50 vigilantes, entre servidores e terceirizados, que se alternam em turnos para cobrir mais de 1 milhão de metros quadrados do campus Trindade, em Florianópolis. O cenário de sobrecarga da segurança institucional foi um dos fatores que levou a obrigatoriedade da contratação de seguranças externos para a realização das festas na minuta de 2022.


“Nenhum pai quer liberar o seu filho para ir à universidade — sabendo que vai ter festa, que ele vai, além de estudar, ter um convívio social — e receber uma notícia de que o seu filho se machucou, ou de que seu filho morreu durante um evento como esse”, diz.


A UFSC defende que a proibição das celebrações não é o ideal, uma vez que os eventos festivos são tradicionais e, hoje, acontecem com ou sem o aval da instituição — como em muitas outras universidades.

Casos de violência em eventos universitários

O caso de estupro na UFES não é isolado. Ocorrências de violência sexual em eventos universitárias são frequententemente noticiadas no Brasil. A mais recente ocorreu em janeiro de 2023, quando a estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Janaína da Silva Bezerra, de 22 anos, foi estuprada e assassinada durante uma calourada no campus de Teresina.

A festa não havia sido autorizada pela instituição, que, na época, disse não ter conhecimento formal da calourada. A UFPI afirma que, por não ter ciência do evento, a segurança institucional da Universidade não realizou rondas próximas ao local.


O feminicídio de Janaína escancarou para todo o país a precariedade e a violência presentes nos eventos realizados dentro das UFs.


Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a Universidade Federal do Pará (UFPA) são algumas das instituições federais que também já registraram casos, ou suspeitas, de estupros durante festas promovidas por estudantes.

Com a fragilidade da segurança institucional e a prática não-regulamentada de eventos, os alunos ficam expostos a outros tipos de violências. Dentre diversos casos de assaltos, furtos e brigas noticiados em festas universitárias, mais recentemente, em julho de 2023, um estudante — que não teve sua identidade divulgada — reagiu a uma tentativa de assalto e foi baleado no complexo de festas “Vadião”, dentro do campus Guamá da UFPA, em Belém. Como medida, a universidade — que não possui normativa exclusiva para eventos festivos — decidiu suspender a realização de festas em todos os campi.

Em 2017, houve um caso semelhante no campus Samambaia da UFG, em Goiânia. Ariel Ben Hur, estudante de Ciências Ambientais, foi assassinado e uma outra pessoa — que não teve a identidade revelada — foi baleada durante um tiroteio em uma calourada não-regulamentada, organizada pelo Diretório Central dos Estudantes da UFG (DCE-UFG). Assim como na UFPA, após o caso, as festas foram suspensas. Porém, em contrapartida, ao invés de proibir a realização dos eventos, a UFG optou por elaborar uma resolução normativa exclusiva para regulamentação dos eventos festivos dentro de seus campi.

Hoje, o documento orienta a organização do evento — por meio de medidas de segurança obrigatórias, vistoriadas pela instituição -, aprova e regula o consumo de bebidas alcoólicas, além de cobrar a criação de ações para prevenção de violências relacionadas a gênero, LGBTfobia, raça, etnia e classe social. “A resolução regulamenta, mas não proíbe. E, de lá para cá, não houve nenhum evento com outra intercorrência. […] É tudo focado, numa festa em que as pessoas possam se divertir com segurança”, afirma o Secretário de Promoção de Segurança e de Direitos Humanos da UFG, Ricardo Barbosa.

Quantas e quais UFs regulamentam as festas?

Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), em 2021, cerca de 1,3 milhão de estudantes estavam matriculados em cursos de graduação de Universidades Federais. Todo esse contingente de pessoas, disposto em diversos campi ao redor do país, tem seu convívio social e acadêmico, dentro das universidades, regulamentado por diferentes normativas — ou por nenhuma, quando se fala em eventos festivos.

Para compreender de forma mais clara quais são as medidas adotadas pelas instituições em nível nacional, foi realizada uma pesquisa informal com as Universidades Federais do Brasil, com intuito de levantar dados sobre quantas e quais possuem, ou não, resoluções normativas sobre a organização de festividades em seus campi.

*O gráfico se baseia nas respostas de 31 Universidades Federais. 38 UFs não responderam à pesquisa

Nas UFs, não há um padrão pré-estabelecido de quais são as informações que as resoluções devem conter. Ainda assim, elas abordam tópicos comuns entre si, como limite de público, duração e horário, consumo e comercialização de bebidas alcoólicas e prazo para aprovação do evento pela instituição. Esses regramentos permitem que as instituições tenham mais controle sobre como as celebrações devem ocorrer.

A tabela abaixo compara os pontos comuns entre nove, das 68 UFs do Brasil, que responderam à pesquisa e regulamentam as festas universitárias.

Comparação entre as Resoluções**

*A tabela se baseia nas resoluções das 9 UFs que permitem as festas e responderam à pesquisa. *A tabela foi dividida para melhor visualização das informações devido à qualidade da imagem.

Direito ao lazer nas Universidades Federais

As Universidades Federais, como espaço público, podem e, de acordo com o artigo 6° da Constituição Federal, devem desempenhar a função de, além de ser um ambiente para a formação profissional e acadêmica, ser um espaço para a promoção de lazer. Entretanto, com a institucionalização do espaço, por meio das universidades públicas, e o contexto complexo da convivência universitária, o lazer, em muitos casos, não é prioridade.

A estudante do curso de Farmácia do campus Alegre da UFES e representante da Mobilização Estudantil de Alegre (MEA), Cassiane Araújo, relata que dentro da universidade não há possibilidade de realizar qualquer tipo de confraternização entre alunos.


“Dentro do campus, eu nunca vi festa. Desde que eu entrei, eu nunca vi mesmo. Não existe no nosso campus um lugar que a gente possa ir para ficar tranquilo e chamar de nosso”.


A estudante afirma que, sem espaço adequado e com a proibição, as comemorações no campus não são uma realidade. O campus tem 3 mil estudantes e fica no município de Alegre, cerca de 200 km da capital Vitória.

A alternativa encontrada pelos universitários foi realizar as integrações e encontros em repúblicas e bares no entorno da universidade. “É um número pequeno de pessoas que se concentram nas festas e nas repúblicas. É coisa de 50 pessoas numa casa e dá um ‘problemão’”. A questão a que ela se refere diz respeito ao ‘SOS Guararema’, um movimento iniciado pelos moradores próximos à universidade, após a pandemia, contra a presença dos estudantes nas ruas, bares e repúblicas do bairro Guararema, próximo ao campus. “Fizeram bandeira, faixa com ‘SOS Guararema’. Começaram a colocar nas casas, nas varandas, nas janelas, como se a gente fosse um problema ali para eles”, conta.

Impedidos de ocuparem o espaço público do campus e pressionados pelos moradores, os estudantes, aos poucos, pararam de promover seus encontros.


“A gente nunca teve um espaço dentro da Universidade. A Universidade sempre teve essa mesma arquitetura. ‘A gente só está lá para estudar’. É o que deixam bem claro para a gente”, expõe a representante estudantil.


Na UFSC, o lazer faz parte da cultura universitária, segundo Diogo Félix, Diretor do Departamento de Assuntos Estudantis (DeAE) e presidente do Grupo de Trabalho responsável pela Minuta de Resolução Normativa sobre Festas da UFSC. Ele afirma que as resoluções viabilizam a promoção de eventos com segurança. “Queremos criar uma cultura [de festas]. Se conseguirmos isso, a gente cria uma cultura com mais segurança e conseguimos ter mais festas. Hoje, muitas delas acontecem de maneira clandestina. Isso não é bom para ninguém”.

Para o DCE da UFSC, a minuta representa um avanço significativo no direito de realizar as celebrações, dado o cenário nacional, ao garantir o diálogo entre o movimento estudantil e a instituição. “A reitoria se propor a não proibir é algo muito progressista diante da realidade das universidades. A criação de um Grupo de Trabalho [GT] que realmente acate essa demanda do DCE é muito positiva”, relata o representante do DCE-UFSC no GT, Antônio Fiori Canavese.

Como revelam os dados – e infelizmente para os universitários – apenas algumas UFs enxergam a realização de festas regulamentadas como fator essencial para a convivência universitária.


“Queremos que essas celebrações sejam aqui, na Universidade. Do ponto de vista realista, as universidades que proibiram não tiveram nenhum sucesso”, destaca o Secretário de Promoção de Segurança e Direitos Humanos da UFG, Ricardo Barbosa.


Reportagem produzida para a disciplina de Linguagem e Texto Jornalístico III, do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Publicar comentário