O peso da precarização: como é o trabalho de quem sobe o morro

Um olhar sobre as linhas de ônibus mais desafiadoras na cidade da imobilidade urbana

ARTHUR ALVES, CAMILA ELOISA E FERNANDA ZWIRTES

Embreagem, freio, acelerador, comunidade. Imagine dirigir um ônibus que pesa mais de 17 toneladas, seguindo a linha Morro do Horácio via Mauro Ramos, em uma quarta-feira, final da tarde,  horário de pico com mais de 60 pessoas dentro do veículo. As ruas são íngremes, quase verticais e carros estacionados dificultam o caminho, que é percorrido em estradas largas o bastante para apenas um veículo. Este trajeto é considerado pelos motoristas um dos mais difíceis de ser feito. Não é por acaso que nem todos os motoristas sabem cumprir esta viagem com maestria, e os que conseguem, são escalados apenas para essa função. O grande pavor para os condutores que percorrem as “linhas de baixo”, termo utilizado pelos motoristas para definir as rotas comuns, é ser escalado para os trajetos com morros.

Hélio tem mais de oito anos de experiência e está acostumado a percorrer o caminho, realizando inúmeras manobras complexas para fazer as curvas em ruas íngremes. Não há espaço para erros.  Na melhor das hipóteses, o veículo será guinchado, provocando um enorme transtorno para o condutor, passageiros e para as pessoas que passam pelo morro. A pressão já virou rotina. Apesar de encontrar inúmeros obstáculos durante o trajeto, Hélio acabou naturalizando sua realidade desafiadora.

O companheiro de trabalho, Hermes, também exerce importante função. Cobrador há treze anos, ele auxilia os passageiros, controla o fluxo de pessoas dentro do ônibus, orienta a abertura e o fechamento das portas, faz a cobrança das passagens e outras tarefas que Hélio, ocupado com as tortuosas e estreitas ruas do morro, não pode cuidar. Diversos são os trechos perigosos conhecidos entre os motoristas.

Ao fazer mais uma manobra, Hélio descreve um deles. Na linha 769 – Morro Nova Trento, uma curva é conhecida como a “Curva dos Guinchos”.  Ela tem esse nome porque o mínimo deslize leva o ônibus a ficar completamente travado, impedindo o trânsito. Nessa situação, dois guinchos precisam ir ao local para conseguir retirar o veículo. “Quase morri quando precisei fazer essa linha assim que entrei na empresa”, relata Hélio, com um sorriso no rosto, lembrando o nervosismo que sentiu. “Os motoristas mais velhos já sabem como tirar o ônibus, fazendo uma manobra que parece quase um truque de mágica, mas os novatos sempre correm o risco de deixar o veículo preso”, recorda.

Apesar de exercerem funções mais desafiadoras do que os motoristas das “linhas de baixo”, o salário é o mesmo. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores do Transporte Urbanos (SINTRATURB), o piso salarial é de R$2.984,00 para uma jornada de trabalho de 42 horas por semana.

O ofício é exaustivo: sete horas diárias durante a semana e sete horas aos finais de semana. Durante anos, quem sobe o morro sacrifica sábados, domingos e feriados, com um salário incompatível com o cansaço e a dificuldade adicional. A escala é apertada: Hermes ressalta que são raras as vezes que os horários previstos pela gerência são cumpridos, gerando atrasos e transtornos. Não é incomum que motorista e cobrador fiquem sem intervalos de descanso,  devido ao trânsito ou a imprevistos na rota.

Além de necessitar cumprir o horário com pontualidade invejável, Hélio e quem sobe o morro também precisam ter paciência e criatividade. “Lidar com o público é estressante, e precisamos de jogo de cintura para sair de algumas situações”. Hélio concorda: algumas ocorrências exigem sair do protocolo para que a linha não atrase e não ocorram problemas para quem depende do serviço de transporte público.

Trajetos com morros e ruas íngremes desafiam habilidade de motoristas. Foto: Cintia de Oliveira

As Empresas

Quem emprega Hélio, Hermes e os demais motoristas é o Consórcio Fênix, que presta serviços à Prefeitura de Florianópolis. Durante a pandemia, o Consórcio demitiu mais de 1.200 funcionários, em maioria cobradores, em uma ação acordada com o SINTRATURB. A resolução entre as empresas e o sindicato era que os funcionários demitidos recebessem sua rescisão ao longo de dezesseis meses, fato que não chegou a sair do papel. “As empresas queriam pagar a rescisão em 24 meses, nossa oferta era que fosse em apenas 12 e acabamos concordando em 16 meses, em decisão com assembleia dos trabalhadores”, relata Antônio Carlos Martins, secretário de organização do sindicato. “Eles pagaram duas parcelas e entraram em recuperação judicial, não cumprindo com o acordo”, confirma.

Dois meses após a decisão, seis companhias de transporte urbano entraram em estado de recuperação judicial. Destas, cinco não pagaram as pendências até hoje: Estrela, Insular, Emflotur, Jotur e Biguaçu. As empresas Canasvieiras e Transol foram as únicas que ressarciram os direitos trabalhistas devidos, e somente a Transol não entrou em recuperação judicial dentre as membros do Consórcio.

Para alguns motoristas, o sindicato falhou ao aceitar a proposta das empresas.  Muitos ex-funcionários estão sem previsão para receber suas verbas de rescisão. Antônio afirma que o coletivo sofreu um golpe das companhias. “Jamais imaginaríamos que eles iam entrar em recuperação judicial. Estamos enfrentando uma batalha para garantir nossos direitos”, alegou.

O Sindicato

Desde 2000, a pressão para o fim do cargo de cobrador no transporte público de Florianópolis cresce, e só não se concretizou até agora devido à resistência do sindicato e da categoria. Antônio Carlos afirma que, em 2015, com a criação do Consórcio Fênix, o clima ficou ainda mais instável para os trabalhadores. Uma das vitórias do sindicato foi conseguir manter o emprego de 100% dos cobradores, mas em 2020 isso mudou. A intenção das empresas era reduzir o número em até 50%, fato que acarretaria em uma demissão de centenas de funcionários.

Apesar da luta, o poder de decisão das empresas avançou com a pandemia e pôs fim à estabilidade empregatícia dos trabalhadores. Com a falta de participação presencial dos trabalhadores nas assembleias, o sindicato viu sua influência retroceder. “A categoria ficou fragilizada, com medo. Não tínhamos estrutura para fazer uma mobilização”, relata Antônio.

Com as mudanças estruturais nas relações de trabalho que se consolidaram nos últimos anos, até mesmo trabalhos formais com direitos garantidos por lei sofrem os efeitos da precarização. O advogado trabalhista Prudente José Mello defende que o avanço do neoliberalismo faz com que a luta sindical seja cada vez mais silenciada e que a precarização do trabalho surja como um produto direto dessa situação. “Hoje, os sindicatos são vistos como inimigos e existe um movimento neoliberal para destruir a relação existente entre as organizações dos trabalhadores; tudo que contrapõe essa lógica conservadora das estruturas de poder é considerado inimigo”, aponta.

O Estresse

Para o motorista Hélio e o cobrador Hermes, tudo isto está no plano de fundo ao começar a subida da linha do Monte Serrat. O grande desafio nessa rota são os outros veículos, principalmente os carros que sobem o morro para cortar caminho em dias de muita fila na Avenida Beira Mar e no Túnel Antonieta de Barros, algo que muitas vezes impossibilita a passagem de um ônibus na estreita Rua General Rosinha. Enquanto mais passageiros embarcam, Hélio relata os diversos percalços durante a viagem. “Nesta linha, sai um ônibus antes de nós que talvez esteja descendo quando a gente estiver subindo, e se isso acontecer tenho que dar ré até ele conseguir passar pela gente”, relata. Hélio ainda conta que testemunha situações de risco diariamente. “Uma vez, chegamos a bater o ônibus cinco vezes em postes ou muros porque não havia espaço”, conclui o motorista. Essas situações precisam ser comunicadas à empresa, que avalia se houve falha na condução ou se era inevitável.

Nossa reportagem acompanhou um pouco do cotidiano desses profissionais. Uma das viagens ao Monte Serrat começa tranquila. O ônibus sai com os assentos lotados, e poucas pessoas em pé. No momento que o sol se põe na cidade, começa a subida na rua General Rosinha, íngreme e estreita. Tudo segue calmo e nós perguntamos a Hélio se é sempre assim. “Não, hoje está muito tranquilo”. Após uma curva, ele dá de cara com o ônibus em sentido contrário, que havia saído dez minutos antes. Será necessário dar ré. “Melhor eu descer do que ele”, sentencia o motorista. A partir daí, Hélio realiza seu trabalho com uma precisão quase sobre-humana: conduz um ônibus lotado de 17 toneladas de ré por cem metros, em uma rua extremamente íngreme, sem qualquer incidente. Após o sufoco, que surpreende e apavora os passageiros, Hélio e Hermes seguem tranquilamente o trajeto, e não parecem estar impressionados por terem acabado de executar uma manobra extremamente complexa e perigosa.

Hélio comenta que a linha do Monte Serrat é a mais estressante para ele. Perguntamos o porquê. São os passageiros? O trânsito? A falta de espaço? A impossibilidade de ir pra frente por conta de outros carros? “Tudo isso que você falou e mais um pouco”, ele responde, sucinto. Ainda relata que uma vez precisou esperar uma hora após começar a subida, pois o caminho estava bloqueado por uma operação policial na rua utilizada pelo ônibus.

Todos os motoristas concordam: a profissão é estressante. Fisicamente, o manuseio do pedal de embreagem deixa a perna esquerda cansada e enfraquecida. Mentalmente, a constante atenção ao trânsito pesado de Florianópolis e outras preocupações do ofício também cobram seu preço. Em linhas sem cobrador, o estresse se multiplica. Cuidar do dinheiro e da segurança dos passageiros, além de perder o pouco tempo livre devido aos atrasos inerentes à uma viagem onde o motorista precisa cobrar os usuários do transporte, são alguns dos motivos que causaram um aumento nos afastamentos por estresse, afirma o secretário Antônio.

O advogado Prudente Mello defende que a qualidade de vida do trabalhador está intrinsecamente relacionada com seus direitos trabalhistas e a proteção da saúde.“Se você trabalha no seu intervalo, você está diminuindo a qualidade de vida e suas condições para você garantir uma vida saudável”, relata. “Se você trabalha e não tem intervalo de uma hora ou duas horas e você come desesperadamente para você voltar ao trabalho, obviamente o seu organismo, a sua mente, o seu corpo vão sofrer por isso”, exemplifica. Ao fim da linha Monte Serrat, Hélio e Hermes fazem um intervalo de vinte minutos, o único planejado entre suas sete horas de trabalho. Deveria ter sido trinta minutos, mas a rota acabou atrasando e eles seguiram novamente ao trabalho.

A próxima parada

No dia 1º de maio, uma nova decisão deve ocorrer para a categoria: a permanência ou não dos 330 cobradores da Grande Florianópolis. Hermes é um deles, que ainda está ativo após as demissões em massa por conta da pandemia, pois sua presença nas linhas do morro é considerada essencial em um trajeto tão dificultoso.

Numa das viagens que a reportagem acompanhou, motorista, cobrador e passageiros conversam e citam a necessidade dos cobradores para a operação dos ônibus. Hélio relata que sem a ajuda do cobrador, opera em situação precária e a segurança de todos entra em xeque. “O risco de um passageiro ser prensado pelas portas ou de acontecer um furto no caixa do ônibus quando eu preciso descer para ajudar um cadeirante é muito maior sem a presença de uma segunda pessoa”, afirma o motorista. Os passageiros concordam: a viagem sempre atrasa quando o cobrador está ausente.

Não bastasse lidar com embreagem, freio, acelerador, comunidade, adicione passageiros, portas, dinheiro, troco, passagem, acessibilidade e a necessidade de cumprir horários. Imagine o quão desesperador deve ser ganhar um salário que não valoriza as habilidades que você possui, que não compensa o estresse e o esforço diário e ainda temer, no final do dia, acordar sem seu emprego. As linhas que sobem o morro não carregam apenas as toneladas de metal e centenas de passageiros diariamente – elas também levam o peso da precarização de um trabalho essencial para o cotidiano da Ilha e o descaso da iniciativa privada com a dignidade humana.

Os nomes Hélio e Hermes são fictícios.

Rotinas estressantes dos motoristas são agravadas pela falta de cobradores. Foto: Cintia de Oliveira

Reportagem produzida para a 1° Semana de Produção Jornalística do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Link para matéria original: https://spjjorufsc.wixsite.com/especial-trabalho-pr/post/o-peso-da-precarização-como-é-o-trabalho-de-quem-sobe-o-morro

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