Da proibição à prescrição: a trajetória da cannabis medicinal no Brasil

Durante uma década de legalização da cannabis medicinal, muitas vidas tem se beneficiado com o uso terapêutico da planta

ALICE MACIEL E GIOVANNI RIBEIRO (08/11/2023)

“Eu te amo”, essas foram as primeiras palavras de Jimi Califa, aos três anos e quatro meses. Essa conquista ocorreu 18 dias após a primeira ingestão do óleo de canabidiol (CBD) feita pela criança. “A gente botava no ‘pãozinho’”, conta a mãe, Camila Monte Blanco, 35. Nos meses seguintes do uso do medicamento, novos avanços foram constatados. A família percebeu Jimi mais ativo, as frases saíam com fluidez e ele conseguia ler algumas palavras.

Jimi foi diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista Não-Verbal após um episódio que ocorreu quando tinha um ano e sete meses. Numa tarde de domingo, a mãe e o pai, Diego Lima, 45, levaram os filhos ao circo. Jimi e o irmão Ravi, de um ano, chegaram animados ao ambiente. No entanto, por conta do barulho, as mãozinhas do primogênito foram imediatamente em direção às orelhas. O espaço repleto de estímulos não agradou e a audição sensível do menino foi o sinal de alerta.

A partir daquele momento, outros sinais, antes despercebidos, passaram a fazer sentido: Jimi apresentava pouca concentração prolongada, dificuldade para dormir e muita agitação. Na busca por uma melhora na qualidade de vida do filho, a família optou, primeiro, pela ajuda médica convencional e seguiu as orientações terapêuticas tradicionais. Não foi suficiente. Jimi não apresentava nenhuma melhora significativa.

Em 2019, Diego e Camila seguiram o conselho de uma amiga que recomendou pesquisar sobre o uso da cannabis medicinal. “Procurei em diversos lugares, fiz pesquisas malucas em redes sociais com hashtags de ‘autismo e cannabis’, mas não encontrei muita informação sobre o assunto”, desabafa Camila. Ajustes nas doses, teste nas mais diferentes maneiras de administrar o óleo e observações atentas às reações do filho diante do medicamento foram necessárias.


Camila esclarece que “por mais que os médicos tentassem explicar tudo, tem coisas que só no dia-a-dia a família descobre”.


Jimi Califa com a camiseta estampada: “O meu compromisso com a minha natureza é de não ser igual”. Foto: Diego Califa/Instagram

Assim como Jimi, outros 150 mil brasileiros foram beneficiados com o uso do CBD nos últimos dez anos. Pessoas com as mais diversas patologias, de Alzheimer, Epilepsia e Parkinson à enxaqueca crônica, ansiedade e depressão, puderam recorrer ao uso medicinal da cannabis. Desde 2014, quando a brasileira de cinco anos, Anny Fischer, obteve a primeira autorização judicial para a importação de um produto de base canábica, houve evoluções nas regulamentações no país.

Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), somente em 2022, 79.995 novos pacientes foram autorizados a importar produtos derivados da planta. Atualmente, diversas assembleias legislativas estaduais debatem a possibilidade de autorizar a inclusão de medicamentos à base de cannabis no Sistema Único de Saúde (SUS) e sua distribuição gratuita.

Norberto Fischer, 55, e Katielle Fischer, 42, pais de Anny, recorreram à Justiça após uma importação ilegal do CBD em 2013. A criança sofre com síndrome de CDKL-5, uma condição genética rara que ocorre por variação no gene presente no cromossomo X, afetando principalmente meninas. As convulsões provocadas pela síndrome geram modificações no desenvolvimento neurológico, a impossibilitam de andar, falar e se alimentar. O pai lembra que, quando tinha quatro anos, “ela tomou oito anticonvulsivantes simultaneamente”.

Com a evolução do quadro de Anny após uso do CBD, a família se mobilizou publicamente e judicialmente para que a Anvisa permitisse a importação do óleo para fins medicinais. Em 2014, Anny se tornou a primeira pessoa do Brasil com autorização para importar um derivado da Cannabis.


“Era uma média de 80 convulsões por semana, com o medicamento, os números baixaram consideravelmente”. Após nove meses de utilização do CBD, as convulsões já eram esporádicas. Hoje, dez anos depois, ela consegue ter controle de tronco, cervical, e faz contato com o olhar.


O apelo da família de  Anny por acesso à cannabis medicinal, fez com que diversas famílias buscassem a Justiça para alcançar soluções legais para suas próprias necessidades médicas. Em 2015, de acordo com a Anvisa, 850 autorizações para a importação foram concedidas. Com a alta demanda, o primeiro avanço regulatório foi estabelecido pela agência por meio da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 17/15. Essa normativa permitiu que Pessoas Físicas, munidas de prescrição médica, importassem em caráter excepcional, produtos à base de canabidiol. A liberação estava condicionada à aprovação prévia do cadastro do paciente no site da Anvisa e ao teor de tetrahidrocanabinol (THC) — principal composto psicoativo da cannabis, responsável pelos efeitos alucinógenos — no produto importado, que deveria ser inferior ao de canabidiol (CBD).

Fonte: Anvisa

O extrato da cannabis se apresenta de diferentes formas no âmbito medicinal, sendo a mais comum na fórmula de óleo.  O canabidiol possui ampla diversificação de composições e finalidades, como o Full Spectrum (todos os componentes da planta), o Broad Spectrum (todos os componentes da cannabis, menos o THC) e o óleo com o CBD isolado (uma forma pura e concentrada do canabidiol). Segundo a psiquiatra Dra. Akemy de Souza, é necessário entender que há uma crescente ideia de “panaceia”, como se o tratamento curasse todas as doenças. No entanto, ela explica que os pacientes estão sujeitos a adequações nos tipos de óleos, “alguns se adaptam, outros não”.

Hoje, o Conselho Federal de Medicina (CFM) indica o uso do medicamento em apenas três casos: epilepsias na infância e na adolescência, como Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut, e em complexo de Esclerose Tuberosa.  O uso em pesquisas científicas, condicionados a rigorosos protocolos éticos, e em cuidados paliativos também são autorizados pelo CFM. Qualquer uso fora dos casos previstos pela normativa podem resultar em sanções legais. Os Green Doctors — como são chamados os médicos que prescrevem medicamentos de canabidiol — podem enfrentar processos judiciais e ter suas licenças profissionais cassadas, se prescrevem de forma indevida. “Muitos pacientes, agora, estão buscando esse tipo de tratamento e, nós, profissionais, também estamos explorando alternativas que possam beneficiá-los”, explica Akemy.

A psiquiatra tem prescrito medicamentos à base de cannabis nos últimos cinco anos e alerta que “legalizar é ideal para que haja a devida regulamentação”. Na Frente Parlamentar de Estudos Técnicos, Científicos e Associativos sobre Cannabis Medicinal, lançada na Assembleia Legislativa de Santa Catarina em setembro de 2023, deputados votarão três projetos que abordam a disponibilidade do canabidiol no SUS.


O deputado estadual Marquito (PSOL), que compõem a frente parlamentar, atenta para a necessidade da legislação reconhecer a planta na perspectiva da saúde pública, “o alto custo elitiza o consumo e  acesso ao medicamento”. 


Segundo o mapeamento de 2022 da Kaya Mind – grupo pesquisador do mercado da cannabis na América Latina – o ticket médio para a importação do CBD é de R$498,21, com o frete.  Quando chega às farmácias brasileiras, o valor do medicamento chega a R$949,94. Para democratizar o acesso, uma alternativa que vigora nos últimos anos é o intermédio feito pelas associações canábicas e as ONGs (Organizações Não Governamentais) que visam garantir direitos, dar apoio e acolhimento a pacientes desfavorecidos financeiramente.

“Hoje temos 1.500 pacientes que consomem o óleo mensalmente, e desses 1.500, boa parte consome de graça ou com desconto”, relata Pedro Sabaciauskis, fundador da ONG Santa Cannabis. A Federação das Associações de Cannabis Terapêutica, atualmente, conta com 34 associações devidamente registradas no país. As vendas de produtos à base de cannabis impactam diretamente o setor varejista. Somente no primeiro trimestre de 2023, foram vendidas 193 mil unidades dos produtos, que movimentaram quase 80 milhões de reais. O crescimento foi 200% se comparado aos dados do mesmo trimestre de 2022. A expectativa é otimista, Pedro anseia que nos próximos dez  anos o mercado esteja consolidado.

Fonte: Federação das Associações de Cannabis Terapêutica 

Com o uso do óleo Full Spectrum, Benedito Inácio Ribeiro, 84, faz tratamento dos sintomas do Alzheimer há dois anos. O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva que afeta a função cognitiva, o comportamento e a memória. Por não ter cura, o CBD trabalha na minimização de alguns de seus impactos. “O apetite voltou”, aprova a família. Além da melhora na alimentação, as conversas fluem e o foco melhorou.

Polyana Brustolin, 23, fez o uso do óleo com o CBD isolado para o diagnóstico de depressão e ansiedade. Após oito anos de medicamentos antidepressivos, ela atualmente faz uso do CBD apenas em crises, e se vê livre dos efeitos colaterais de alopáticos controlados. Benedito e Polyana representam casos que estariam sendo tratados com os medicamentos convencionais e hoje contam com uma abordagem mais natural, demonstrando potencial eficiência.

Conforme avança, o debate canábico traz à tona a necessidade de desestigmatizar o assunto. Em dezembro de 2022, a Santa Cannabis foi vítima de uma denúncia que resultou na apreensão de 700 plantas e na prisão de três jardineiros. Com a licença legal para o cultivo, os jardineiros foram soltos, mas as plantas não foram recuperadas.


“A planta que é olhada a partir do Código Penal, deveria ser vista a partir da perspectiva de saúde”, enfatiza Marquito.


No Brasil, o plantio e a comercialização ainda esbarram na legislação associada ao tráfico de drogas. No mundo, 40 países já legalizaram a cannabis medicinal. Com a regulamentação e descriminalização, pacientes como Jimi poderiam ter acesso facilitado, seguro e eficaz a tratamentos que aliviam suas condições, melhorando sua qualidade de vida. Hoje, com 6 anos, o menino lida com novos desafios:  completou o caminho de casa até a escola andando de bicicleta, descobriu o fascínio por baleias e não quer mais ouvir falar em limitações.

Óleo de canabidiol (CBD). Foto: Reprodução/Kaya Mind

Reportagem produzida para a disciplina de Linguagem e Texto Jornalístico III, do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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