EJA: As histórias das mulheres que já são muito, mas que buscam “ser alguém”

As vozes femininas dentro da Educação de Jovens e Adultos em Florianópolis

FERNANDA ZWIRTES E NATHALY BITTENCOURT

Sobre o papel está o lápis, que acaba de rascunhar algumas palavras. Guiado pela mão de uma mulher, ele dá vida a letras, sílabas, frases, textos que compõem o início de uma história. Acima de tudo, estão os olhos que, atentos a todo esse processo, se iluminam com a percepção de que em um simples pedaço de papel está escrito um caminho: a educação. Em uma dessas histórias, essa vivência  é transformada em poesia:  

“A gente cresce,
Quem me formou foi o EJA.
Sabiam dos meus sonhos sim,
Me disseram que o EJA os realizará enfim.


É o EJA, sim.


Não perca a esperança,
De você no EJA crescer.


Os mestres são de primeira,
Que fazem a gente viver.


É o EJA, sim.”

Assim declama Maria Moraes de Andrade, de 82 anos. O poema “É o EJA” está publicado no seu primeiro livro, “Da enxada pro lápis”, que escreveu sozinha após se alfabetizar na Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Núcleo de Estudos da Terceira Idade (NETI) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Como Maria, mulheres dos quatro cantos do país decidem retomar os estudos e vivenciam a EJA no seu cotidiano, mesmo com as dificuldades impostas pelas diferentes formas de preconceito e violência.

No Brasil, 1.436.215 mulheres estão matriculadas na EJA, o que corresponde a  51,76% do total de inscritos, segundo a Secretaria de Educação de Santa Catarina.  Ainda de acordo o órgão, apesar de as mulheres representarem 46,69% das matrículas no âmbito estadual, em Florianópolis, esse número chega a 51,44%. Cada um desses valores representa uma vida, com questões que perpassam gênero, raça, sexualidade, e, em um contexto que a idade faz diferença no aprendizado, a faixa etária. As mulheres de até 30 anos representam apenas 37,8% das matrículas da EJA a nível nacional, de acordo com o último censo do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), de 2019.  São as mulheres acima dos 30 anos que formam o maior contingente – 58,6% dos alunos. 

Adélia Domingues Garcia da Silva é parte dessa estatística – dos seus 88 anos, viveu 71 sem decifrar as letras. Só entrou em contato com o mundo das palavras quando, mudando-se para Florianópolis, iniciou os estudos no NETI. Em uma das salas do núcleo, é possível ler uma frase em destaque na parede: “A pressa é inimiga da perfeição”. A partir desse princípio, Adélia retomou seus estudos e há quatro anos está no processo de escrita da sua autobiografia. “Todo mundo tem uma história e eu quero contar a minha”, afirma sorridente. 

A história de Adélia retrata, além de sua resiliência, uma realidade de direitos negados. Garantido na Constituição Federal no artigo 6°, o acesso à educação se classifica como um direito social e bem público. Entretanto, não é o que Adélia vivenciou na sua infância e juventude. “A gente trabalhava de uma forma que hoje seria considerado trabalho escravo. Não íamos à escola e, quando crescemos, tivemos que cuidar dos filhos”, relata. 

Seria pelo menos cinco décadas depois, em 1990, que Adélia teria sua infância resguardada pela Justiça, quando a Lei 8.069, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi aprovada e, dentre outras diligências, definiu no art. 60 a proibição de qualquer trabalho a menores de 14 anos. Apesar do resguardo legal, dados de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) indicam que pelo menos 594 mil meninas ainda estavam em situação de trabalho infantil no Brasil. Nestes casos, em jornadas de até 36 horas semanais, estima-se que a evasão escolar chegue a 40%, crescendo proporcionalmente, segundo o estudo Trabalho Infantil e Adolescente: impacto econômico e os desafios para a inserção de jovens no mercado de trabalho no Cone Sul, de 2013.  

As tarefas domésticas e cuidados com moradores de dentro ou fora de domicílio constituem-se como as principais razões que afastam  jovens de 15 a 29 anos do estudo durante a infância, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com a pesquisa de 2019, 94% das entrevistadas relataram ter interrompido sua educação e trabalho por obrigações domésticas. Cuidado de filhos, da casa, de parentes. É nesse contexto que a evasão escolar e o analfabetismo ganham espaço para fazer com que mulheres de distintas idades tenham que escolher entre o cuidado familiar e o estudo.

Any Gabriele Silva, 24, entre uma lição e outra, também cuida de seu filho, Warlley Gabriel, de oito anos, que assim como ela, pegou gosto pelas aulas. “É uma experiência nova, mas, ao mesmo tempo, é bem legal para mim e para o meu filho, porque ele se sente abraçado na EJA. Ele aprende junto comigo”. Acordar cedo, trabalhar longas horas, buscar Warlley Gabriel na escola, voltar e cuidar da casa. A rotina de Any pode ser considerada uma tripla jornada – trabalho, estudo, serviço doméstico. “Eu chego em casa exausta, e penso muito em desistir, como já aconteceu algumas vezes, mas me formar é meu sonho”, relembra. Mesmo se quisesse, seu menino não deixaria. “Ele bate o pé e fica triste quando tento ir para casa em vez da aula”.

Any e Warlley na EJA. Arte: Jovana Paula Ferro

A palavra “exaustão” é citada várias vezes nessas histórias. Masi  Rocha da Silva, auxiliar de limpeza de 49 anos, descreve a rotina que faz até chegar o momento da aula. “Até o meio-dia, eu limpo 12 banheiros, entre os outros afazeres, e depois vou para a aula, três vezes na semana”. Sua vida mudou quando foi realocada para trabalhar no NETI e recebeu incentivo das professoras que ministram a EJA no espaço. “Elas falavam assim: vai estudar, menina, vai seguir teus estudos! Que essa vida de limpeza não é pra ninguém. E não é mesmo. Foi de tanto ouvir isso, que voltei”, relata Masi. Hoje, mesmo cansada, ela não falta um dia – sua disciplina favorita é matemática. 

O que conecta Maria, Adélia, Any e Masi, além da busca pelo conhecimento formal, é a possibilidade que lhes foi dada de serem vistas pelo que são e não pelo diploma que ainda não possuem. Diego Pacheco, professor de história e coordenador do Centro de Educação Continuada (CEC), defende que a EJA não deve ser concebida como um supletivo.“Essa expressão parte da ideia de suplemento, que é aquilo que falta a alguém. Por princípio, acreditamos que os estudantes da EJA não são incompletos. Eles são adultos completos em busca de escolarização”. 

 Ao entrar na sala dos professores do CEC, lê-se uma frase escrita em destaque na lousa: “Ler, escrever, ouvir e falar todos os dias”. Ela descreve, sucintamente, uma metodologia pedagógica que foge do convencional. Em salas de aula pouco tradicionais, é possível observar estantes de livros, pias, sofás, televisão, geladeira, com mesas e cadeiras distribuídas sem ordem. O ambiente que, primeiramente, parece caótico, funciona sem disciplinas concebidas em uma grade curricular comum – matemática, história, etc.  Lá, os professores não são o centro da aula: quem ocupa esse lugar são os estudantes. Por meio dos questionamentos problematizados pelos próprios alunos –  e exercendo essas quatro ações é que a aula é conduzida, em todos os três segmentos da EJA. 

Os “segmentos” são as divisões baseadas no conteúdo ensinado na EJA.  A etapa de alfabetização e anos iniciais corresponde ao primeiro segmento, dos anos finais do ensino fundamental ao segundo e do ensino médio ao terceiro. Todos eles são atravessados por uma pedagogia estruturada pelo acolhimento dos estudantes. Foi assim, com uma educação baseada no afeto e no diálogo, que, em Florianópolis, surgiu a ideia de entregar diários aos matriculados. Com o intuito de oferecer um lugar seguro, eles podem escrever sobre sua rotina, frustrações e felicidades. 

Algumas alunas que passaram pela EJA Centro II deixaram seus diários para trás. Em alguns trechos, é possível perceber as vivências femininas que perpassam sua jornada pela educação: 

“Você deve estar se perguntando o que eu faço por aqui. Pois bem, eu te respondo. Assim como todos que estão por aqui, que tem sonhos, necessidades e obrigações, eu também tenho, mas o meu é um pouco diferente. Diferente, por quê? Bom, eu não pude estudar quando era mais nova. Eu tinha que cuidar dos meus irmãos para que minha mãe pudesse trabalhar […]”

“Ultimamente, eu estou feliz, porque vou ser mamãe e não vejo a hora de ver o rosto do Harzel ou da Sophia”

“Meu padrasto não gosta que minha mãe tenha amigos ou trabalhe em uma área que tenha homens, etc… E isso é muito chato”

“Hoje, voltei para escola novamente. Estou muito feliz de ter voltado. Agora tenho que me esforçar para terminar antes de ganhar o bebê”

A docência feminina e o desmonte da EJA

Dentro das salas de aula, a presença expressiva das mulheres não está somente nas cadeiras, mas também nas lousas. As aulas são conduzidas por 2.121 mulheres que compõem a docência da EJA no estado, representando 60,44% da totalidade dos educadores do setor. Rosana Fernandes, professora de língua portuguesa, leciona há quatro décadas e vê na EJA uma possibilidade de resgate da autoestima. Aposentada há 11 anos, ela participa anualmente do processo seletivo para trabalhar no projeto. “O acolhimento fortalece as mulheres, é importante lembrar que nada está perdido”, defende.

Apesar do amor manifestado pelos profissionais, o desmonte do setor dificulta a adesão das camadas populares. De 2012 a 2022, a modalidade perdeu 97,36% de sua verba, de acordo com o dossiê Em busca de saídas para a crise das políticas públicas de EJA, uma iniciativa do Movimento Pela Base e realização da Ação Educativa, Cenpec e Instituto Paulo Freire. 

Fonte: Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP)

A verba destinada a cada aluno, pelo Governo Federal, também é diferente quando se fala na EJA. O valor anual por estudante, em Santa Catarina, é de  R$4.739,86, 64% menor do que o valor anual por estudante do Ensino Médio urbano, R$7.406,04, segundo dados de 2022 sobre o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Com essa disparidade de orçamento, políticas de acolhimento, como as que ajudam Any a levar Warlley para a aula, ou auxiliam pessoas idosas como Adélia com o preparo pedagógico correto, são verticalmente afetadas ou, muitas vezes, deixam de existir.

Sem investimento, a educação pública é incapaz de contemplar todas as sociabilidades e vivências que a atravessam – como é o caso das diversas particularidades que permeiam a vida das mulheres que frequentam a EJA. Não há educação com acolhimento se, acima de tudo, não existe uma estrutura material para sua existência.  Sob essa ótica, Diego Pacheco reforça a importância do vocábulo: o nome correto é educação e não ensino de jovens e adultos. Enquanto o ensino prevê somente um método de resgate de onde o estudante parou, conteudista, a educação possui uma perspectiva pedagógica alicerçada na transformação e reconhecimento das dificuldades e bagagens de cada um. “É a EJA, não o EJA. Parece pouca coisa, mas só no gênero  percebe-se uma diferença brutal em relação à visão de educação. Para nós, a EJA de Florianópolis é uma mulher”.

É tentando contornar os obstáculos que a vida impõe a essas mulheres que o lápis continua sendo guiado, revelando as diversas histórias que entoam as vozes femininas da EJA. O que é escrito não é ficção ou romance, é matéria bruta da vida real, feita de sonhos. Rosana anseia por  uma educação mais humana e amorosa. Adélia quer terminar sua autobiografia, que escreveu à mão em seu caderninho, e está quase pronta. Any deseja continuar os estudos e se formar em Direito. Masi, que sempre adorou a área da saúde, pretende fazer um curso de enfermagem quando concluir a EJA. 

Em um dos diários, um relato resume, enfim: 

“Meu objetivo é ser alguém na vida e terminar meus estudos para fazer faculdade de medicina.”

“Você já é alguém!”, responde a professora.

Estudantes do segundo segmento da EJA confeccionando cartazes durante aula. Foto: Nathaly Bittencourt

Reportagem produzida para a disciplina de Linguagem e Texto Jornalístico III, do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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